terça-feira, 28 de novembro de 2017

CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA DA ATIVIDADE DE UMA BOLSA DE BITCOINS


Criptojabuticaba

Eu tenho analisado o desenvolvimento do mercado brasileiro de Bitcoins. Especialmente em comparação com o mercado internacional.

Prioritariamente, minhas análises sobre Bitcoins são tributárias. Meus clientes sempre querem saber quanto precisam pagar em impostos ao comprá-los, vendê-los, transferi-los, resgatá-los, etc.

Porém, fui forçado a fugir da esfera tributária quando notei que o momento de aquisição e transferência das criptomoedas era diferente nas transações internacionais.

Essa discrepância aguçou minha curiosidade e me fez estudar o assunto. Suspeitei, e mais tarde confirmei, que o mercado brasileiro criou sua maneira toda especial de tipificar contratualmente as vendas de bitcoins, altcoins e afins.

Objetivo do artigo e restrições  

Neste artigo, estou fazendo uma análise das transações de Bitcoins com base no Código Civil e no direito Civil, conforme os cânones clássicos que vêm desde o direito Romano.

Estou considerando que o Bitcoin é uma mercadoria. Como uma barra de ouro ou uma saca de grãos. 

Este artigo não vai discutir se os Bitcoins são ativos financeiros, se são valores mobiliários, se são licenças de software, etc.

Estou usando os termos bitcoins, criptomoedas, etc. uns pelos outros. Eu sei que há diferenças, mas elas não importam para o fim deste artigo. Aqui vamos falar de contratos cíveis, aplicados a bens. Estes bens calham de ser moedas eletrônicas.

Especialmente, vamos falar dos contratos de intermediação das vendas desses bens, sobretudo quando a intermediação se dá de forma organizada, no que se convencionou chamar de bolsas de bitcoins.

IMPORTANTE: Este artigo trata de termos gerais de contratação, disponíveis na internet. Eu não sou pessoalmente ligado a nenhuma bolsa de bitcoins nem a qualquer das empresas citadas.

Centros de anúncio e corretagem como bolsas semiformais

Desde o início, suspeitei que as chamadas bolsas de bitcoins estivessem mais próximas de plataformas de intermediação simples, como o Mercado Livre. Fui conferir.

Em seus termos gerais, o Mercado Livre se identifica como uma plataforma de anúncios:

O Mercado Livre presta um serviço consistente na oferta de uma plataforma na internet que fornece espaços para que Usuários anunciantes/potenciais vendedores anunciem, oferecendo à venda, os seus próprios produtos e serviços para que eventuais interessados na compra dos itens, os Usuários /potenciais compradores, possam negociar direta e exclusivamente entre si;

O Mercado Livre também descreve que ele aproxima as partes, mas não se intromete na negociação:

(i) ofertar e hospedar espaços nos Sites para que os Usuários anunciem à venda seus próprios produtos e/ou serviços e (ii) viabilizar o contato direto entre Usuários vendedores e Usuários interessados em adquirir os produtos e serviços anunciados, por meio da divulgação dos dados de contato de uma parte à outra. 

Qual a classificação jurídica deste contrato. Entendo que seria uma prestação de serviço simples (ofertas anúncios) cumulada com uma relação de corretagem (intermediação de negócios).

Todavia, o Mercado Livre já avisa que não pode garantir a entrega da mercadoria. O Mercado livre diz que o dever de possuir a mercadoria a ser vendida é do usuário (anunciante).

Os Usuários anunciantes/potenciais vendedores somente poderão anunciar produtos ou serviços que possam vender e que tenham em estoque,

Este ponto é muito importante porque, no sistema legal brasileiro, a venda se concretiza com a entrega (tecnicamente chamada de tradição). Assim, o Mercado Livre já avisa, desde o início, que ele não possui a mercadoria consigo e não tem como assegurar a conclusão da venda.

Bolsas de Bitcoin e a necessidade de segurança nas vendas

As bolsas de bitcoin, contudo, buscam evitar o risco de que a mercadoria (o bitcoin) não esteja disponível, e por isso solicitam a transferência da posse do bitcoin para si mesmas (para uma carteira eletrônica sob seu domínio), de modo que possam controlar toda a transação.

A dúvida é: qual o contrato cível que descreve esta relação corretamente?

E ainda: as bolsas brasileiras estão caracterizando corretamente as operações?


Contratos cíveis típicos aplicáveis às bolsas de moedas eletrônicas

Isso talvez possa ser enquadrado como um contrato estimatório (popularmente chamado de “colocar em consignação”)

 CAPÍTULO III
Do Contrato Estimatório
Art. 534. Pelo contrato estimatório, o consignante entrega bens móveis ao consignatário, que fica autorizado a vendê-los, pagando àquele o preço ajustado, salvo se preferir, no prazo estabelecido, restituir-lhe a coisa consignada.
Art. 535. O consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável.
Art. 536. A coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou seqüestro pelos credores do consignatário, enquanto não pago integralmente o preço.
Art. 537. O consignante não pode dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou de lhe ser comunicada a restituição.


Todavia, há outros contratos típicos também muito semelhantes.  Por exemplo, o mandato.
 Do Mandato
 Seção I
Disposições Gerais
Art. 653. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.

Apesar da proximidade teórica, os termos gerais das bolsas de criptomoedas brasileiras tentam se afastar dos contratos de consignação e mandato, ao dispor que as bolsas não fazem transações por si mesmas.

Pensando sobre isso, verifiquei os termos gerais de negócio presentes no site do MERCADO BITCOIN, uma bolsa de bitcoins popular no Brasil:

A MERCADO BITCOIN SERVIÇOS DIGITAIS LTDA. não compra, nem vende Bitcoins. O Site apenas possibilita a aproximação entre Usuários que desejam comprar ou vender seus próprios Bitcoins, e oferece funcionalidades para facilitar e dar segurança a essas transações.

Neste aspecto, os termos gerais do Mercado Bitcoin são bem diferentes dos termos contratuais utilizados por bolsas que operam no exterior.

A e-Toro (bolsa europeia) por exemplo, apresenta termos que a vinculam como parte da transação, no sentido de que ela efetivamente atua como o agente que transfere a titularidade dos ativos financeiros. Abaixo, os principais termos contratuais, em inglês e português:

4.6.4. In CFD transactions, We act as a counterparty in such transactions conducted on the trading platform and, therefore, act as the buyer when you offer to sell an Instrument and the seller when you offer to buy such instrumentTradução: Em transações CFD, nós atuamos como contraparte das transações conduzidas na nossa plataforma de negócios e, portanto, atuamos como comprador quando você oferece a venda de um ativo e como vendedor quando você solicita a compra de um ativo.

O contrato da e-Toro se aproxima do contrato de comissão, regulado pelo código civil brasileiro.

Notem que o contrato de Comissão, tecnicamente falando, não é o mesmo que o contrato de intermediação ou corretagem. Popularmente, os termos são confundidos. No contrato de comissão o intermediário vende os bens por conta própria (diferentemente do corretor de imóveis, que só apresenta comprador e vendedor).
Segundo a lei:

 CAPÍTULO XI
Da Comissão
Art. 693. O contrato de comissão tem por objeto a aquisição ou a venda de bens pelo comissário, em seu próprio nome, à conta do comitente.
Art. 694. O comissário fica diretamente obrigado para com as pessoas com quem contratar, sem que estas tenham ação contra o comitente, nem este contra elas, salvo se o comissário ceder seus direitos a qualquer das partes.

Especialmente, o contrato de comissão parece adequado porque, no caso das bolsas de bitcoins, a própria bolsa é corresponsável por fazer a transferência da moeda virtual e por receber o pagamento, uma vez que a moeda virtual está em seu poder e, depois de transferi-la para uma pessoa que pode estar localizada em qualquer lugar do mundo, a bolsa teria muita dificuldade em obter satisfação do pagamento. 

Por este motivo, a bolsa procura se proteger, solicitando o depósito antecipado do pagamento.

Essa corresponsabilidade lembra bastante a cláusula “del credere”, que é uma cláusula opcional dos contratos de comissão.

Art. 698. Se do contrato de comissão constar a cláusula del credere, responderá o comissário solidariamente com as pessoas com que houver tratado em nome do comitente, caso em que, salvo estipulação em contrário, o comissário tem direito a remuneração mais elevada, para compensar o ônus assumido.

CONCLUSÃO: O CONTRATO DO MERCADO BITCOIN SE DIZ CONTRATO DE CORRETAGEM, MAS PROVAVELMENTE A CLASSIFICAÇÃO É INCORRETA

Pela leitura dos termos gerais do Mercado Bitcoin, verifica-se que a bolsa busca se assemelhar ao tipo de contrato oferecido pelo site Mercado Livre ou por sites similares. Ou seja, um contrato de intermediação, tecnicamente chamado de corretagem:
  CAPÍTULO XIII
Da Corretagem
Art. 722. Pelo contrato de corretagem, uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas.


Porém, os detalhes concretos da transação parecem conduzir para um contrato muito mais específico do que o mero contrato de corretagem.

Veja-se bem: a bolsa não faz somente a aproximação dos contratantes. Ela:

·         cadastra os contratantes;
·         Recebe e custodia a mercadoria
·         Recebe e mantém em depósito o pagamento
·         Assegura a entrega (virtual que seja) da mercadoria
·         Distribui o pagamento ao vendedor, retendo a própria comissão.

As atividades da bolsa incluem, portanto, atividades dos contratos de:

·         Mandato;
·         Corretagem
·         Comissão
·         Contrato estimatório
·         Contrato de escrow, do direito norteamericano.

Com base em todo o exposto, eu diria que o tipo contratual mais coerente seria um contrato de Comissão (tecnicamente falando, não confundir com o contrato de corretagem).


Será interessante verificar a evolução do mercado brasileiro, para averiguar se os documentos contratuais se adequarão ao mercado internacional ou se as bolsas brasileiras tentarão forçar a interpretação de seus serviço como serviço de intermediação simples, visando a estabelecer que não atuam diretamente como vendedoras e compradoras (muito embora elas atuem). 

QUAL A IMPORTÂNCIA?

A correta determinação do contrato tem impactos tributários e também cíveis. Influenciará, por exemplo, no tipo de responsabilidade da bolsa em caso de falhas técnicas, atrasos no pagamento e em muitas outras circunstâncias. 

Leia também
Aspectos cambiais da compra de Bitcoins no exerior

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários servem para discussões teóricas e para comentários políticos e econômicos. Se você precisa de auxílio em matérias de Direito Internacional, escreva para contato@adler.net.br.