segunda-feira, 10 de julho de 2017

ARBITRAGEM NA CHINA, ÍNDIA E RÚSSIA

Este é um excerto de um artigo que publiquei há alguns anos, tratando da regulação de contratos internacionais entre os países do BRIC.

Na época, eu era mais otimista em relação à integração do bloco. Hoje, tenho visto que o bloco tende muito para os interesses econômicos chineses e que sua integração traz, juntamente com a liberação do comércio, vários compromissos políticos na esfera internacional.

De modo que ando feliz pelo lado das trocas comerciais, mas muito casmurro quanto aos efeitos políticos dessa união.

Neste post, estou me concentrado no que o bloco tem de bom: a harmonização jurídica que favorece as trocas comerciais.


4 O ORDENAMENTO JURÍDICO DOS BRICs E A ARBITRAGEM COMERCIAL INTERNACIONAL

4.1 Apontamentos Gerais

Sendo a arbitragem um tema amplo, este capítulo concentrar-se-á apenas nas normas essenciais de cada um dos países BRIC a esse respeito.

Numa primeira análise, percebe-se que todos os países em estudo reconhecem a validade da cláusula contratual de arbitragem, e inclusive a possibilidade de execução de laudos arbitrais estrangeiros.  A seguir, algumas considerações pontuais:

4.2 A Arbitragem na China

A arbitragem na China é regulamentada pela Lei de Arbitragem da República Popular da China, de 1994[1].  Essa lei tem clara inspiração na Uncitral, o que facilita sua interpretação.

Via de regra, todas as disputas comerciais privadas poderão ser submetidas à arbitragem. Os temas vedados pela referida lei estão listados no Art. 3.

Artigo 3
As seguintes disputas não deverão ser submetidas à arbitragem:
1 disputas sobre casamento, adoção, guarda, manutenção de criança e herança; e
2 disputas administrativas englobadas na jurisdição do órgão administrativo relevante de acordo com a Lei.


A China adota o sistema de total vedação do recurso a tribunais internos em casos sujeitos à arbitragem conforme artigo 5° da Lei de Arbitragem e o artigo 257 da Lei Processual Civil.

Artigo 5
Uma corte popular não deverá aceitar uma ação iniciada por uma das partes se as partes houverem concluído uma convenção arbitral, salvo se a convenção arbitral for inválida.


A lei chinesa não cria a obrigação de que todas as arbitragens sejam conduzidas em território nacional e a sentença arbitral estrangeira poderá ser executada prontamente (não há a necessidade de homologação por um tribunal). Todavia, o juiz pode negar cumprimento ao laudo se considerar que a decisão viola normas peremptórias internas.

 A China desestimula, contudo, a recusa do cumprimento de laudos arbitrais estrangeiros com base na ordem pública. Os tribunais chineses obedecem a um mecanismo segundo o qual, caso desejem recusar o cumprimento de um laudo arbitral estrangeiro, devem primeiro obter autorização de um tribunal superior. Após a implantação deste sistema, em 1995[2], pouquíssimos laudos estrangeiros tiveram o seu cumprimento frustrado. 

Outro ponto notável é que a lei chinesa, a fim de incentivar a utilização de instituições de arbitragem e aprimorar, desta maneira, a assistência recebida pelas partes, proíbe as arbitragens ad hoc. As partes sempre devem levar sua disputa a uma instituição arbitral regularmente constituída

Artigo 6
Uma comissão de arbitragem deverá ser selecionada pelas partes por acordo.
A jurisdição por sistema de níveis e o sistema de jurisdição distrital não se aplicam à arbitragem.

A CIETAC - China International Economic and Trade Arbitration Commission - é uma das instituições mais conhecidas.

4.3 A Arbitragem na Índia

Na Índia, a lei que regula a arbitragem é a Lei de Arbitragem e Conciliação de 1996, que revogou a lei de arbitragem anterior, de 1940, a fim de melhor se adequar à Lei Modelo de Arbitragem da UNCITRAL e à dinâmica dos negócios internacionais. Além disso, outras leis internas também são relevantes, como o seu Código de Processo Civil, de 1908 (Civil Procedure Act).

O caráter modernizante da Lei de Arbitragem de 1996 foi reconhecido pela Suprema Corte Indiana no caso Konkan Railway Corporation versus Mehul Construction Co.:

“Para atrair a confiança da comunidade mercantil internacional e [atender] às necessidades do crescente volume dos relacionamentos comerciais e negociais da Índia com o resto do mundo após a nova política de liberalização adotada pelo governo, os parlamentares indianos convenceram-se a adotar a Lei de Arbitragem e Conciliação de 1996 conforme o modelo da UNCITRAL; daí advém que, ao interpretar as provisões da Lei de 1996 as cortes não devem ignorar os objetivos do diploma. Uma comparação simples entre as diferentes provisões da Lei de Arbitragem de 1940 e da lei de Arbitragem e Conciliação de 1996 indica, inequivocamente, que a Lei de 1996 limita a intervenção judicial ao mínimo[3]. (Sumeet Kachwaha; THE ARBITRATION LAW OF INDIA: A CRITICAL ANALYSIS; Asia International Arbitrational Journal, Volume 1, Number 2, Pages 105-126.) (tradução nossa)


A Lei de Arbitragem de 1996 aplica-se também à arbitragem Internacional. A seção 2(1)(f) define Arbitragem Comercial Internacional como aquela relativa a disputas nascidas de relações jurídicas consideradas comerciais segundo o Direito Indiano, e em que pelo menos uma das partes é: uma pessoa física nacional de outro país ou residente em outro país; uma pessoa jurídica registrada em outro país, uma empresa ou associação cujo gerenciamento central e controle estejam num país que não a Índia ou se uma das partes é o Governo de um país estrangeiro.

A Índia admite a possibilidade de executar os laudos arbitrais estrangeiros diretamente perante o tribunal competente, sem necessidade de homologação. De fato, o Artigo 47[4] da Lei de Arbitragem de 1996 menciona expressamente que, para as arbitragens internacionais executáveis em solo indiano conforme as disposições da Convenção de Nova Iorque, basta à parte apresentar ao tribunal o laudo original da arbitragem, a convenção arbitral e evidências de que se trate de uma arbitragem internacional.

A lei indiana prevê a possibilidade de recusa de execução de um laudo arbitral internacional somente em raros casos, todos em linha com os princípios da Uncitral (Ex: se as partes eram incapazes ou em arbitragens sobre matérias que digam respeito à ordem pública indiana).

4.4 A Arbitragem na Rússia

A arbitragem comercial na Rússia possui um histórico de mais de um século de tradição. Atualmente, há uma lei destinada especificamente à arbitragem internacional, a Lei Federal sobre Arbitragem Comercial Internacional, de 1993, inspirada amplamente na Lei Modelo de Arbitragem da UNCITRAL.

Arbitragens ad hoc são permitidas na Rússia, ainda que seja mais comum o envio a instituições de arbitragem, como a Corte de Arbitragem Comercial Internacional da Câmara de Comércio e Indústria de Moscou. Curiosamente, a Câmara de Comércio de Estocolmo, na Suécia, também é uma escolha tradicional na resolução de disputas relativas a investimentos estrangeiros na Rússia.

4.4.1 Escopo de aplicação

O Art. 1 da lei de arbitragem comercial internacional delimita bem o âmbito de aplicação da arbitragem internacional:[5]


Disputas resultantes de relacionamentos contratuais ou outras relações civis que surjam no curso do comércio exterior ou outra forma de relações econômicas internacionais, desde que o domicílio de pelo menos uma das partes situe-se no exterior, assim como

Disputas entre empresas que tenham capital estrangeiro, entre associações internacionais e organizações estabelecidas no território da federação russa; disputas entre os membros de tais entidades, disputas entre as referidas entidades e quaisquer outras pessoas sujeitas às leis da Federação Russa.


4.4.2.  Matérias não arbitráveis


Embora a lei de arbitragem internacional permita a arbitragem em matérias virtualmente ilimitadas, desde que incluídas na esfera comercial, a lei interna de arbitragem da Rússia (O Código Arbitral da Federação Russa) apresenta uma lista considerável de matérias sobre as quais não é possível afastar a jurisdição estatal regular.

São elas[6]:
1.    Assuntos da administração e ordem públicas (Ex: disputas tributárias);
2.    Falências;
3.    Constituição e liquidação de pessoas jurídicas;
4.    Disputas entre companhias e seus acionistas ou cotistas;
5.    Disputas sobre fundo de comércio.

Caso uma das partes do conflito seja uma entidade estrangeira, a lista de jurisdição exclusiva estende-se também aos conflitos sobre:

1.    Propriedade estatal, incluindo privatizações;
2.    Imóveis;
3.    Registro de marcas e patentes;
4.    Registros públicos.

A avaliação dessas matérias revestir-se-á de grande importância por ocasião da execução de laudos arbitrais estrangeiros. Mais detalhes no tópico 4.4.4.

4.4.3 Escolha da lei aplicável

O artigo 28 da lei de arbitragem internacional da Rússia franqueia às partes a escolha da lei substantiva aplicável ao conflito.

A redação do artigo merece elogios, pois embute também outras regras extremamente úteis. São elas: (i) caso as partes não indiquem a lei aplicável, o tribunal aplicará a lei de conflito de leis que julgar adequada para determinar qual lei material regerá a arbitragem; (ii) em todos os casos, o tribunal deve decidir de acordo com os termos do contrato e com os usos do comércio aplicáveis à transação.


4.4.4 Execução de laudos arbitrais internacionais

A lei russa é extremamente favorável à execução de laudos arbitrais estrangeiros. Tanto pelas disposições próprias da Lei de Arbitragens Internacionais quanto pela aplicação da Convenção de Nova Iorque de 1958.

As razões para a negação de execução de um laudo arbitral estrangeiro são basicamente as mesmas elencadas pela lei modelo da Uncitral, incluindo incapacidade das partes e vício na formação do tribunal arbitral.

Duas exceções, contudo, são causa de preocupação.  O parágrafo 2º do artigo 36 menciona que não serão executados os laudos que versem sobre matérias não passíveis de arbitrabilidade segundo a lei russa ou que seja contrária às políticas públicas (ou normas públicas).

Essas duas últimas exceções foram, em diversos casos, utilizadas por cortes russas para negar exequibilidade a laudos prima facie legítimos. Situações como essas renderam às cortes do país a reputação de serem hostis aos laudos proferidos em outros países.

Para ilustrar o caso, cite-se um artigo publicado sob os auspícios da Associação dos Advogados dos Estados Unidos[7]:

Uma vez que a lista de razões para a recusa de execução é limitada pela Convenção de Nova Iorque, a violação da ordem pública frequentemente serve como a ultima ratio para a rejeição da execução. Em algumas instâncias, a ordem pública é entendida pelos tribunais muito vagamente. Um caso notório tem sido mencionado tantas vezes entre advogados e pela mídia que se tornou praticamente uma anedota. No caso United World Ltd. v Krasny Yakor (Red Ancor) a corte negou exequibilidade a um laudo arbitral cujo valor era menor que 40 mil dólares sob a alegação de que tal execução levaria a Red Ancor à falência, causando sérios danos à economia regional da sede da empresa e também à economia russa. Portanto, esses danos estariam em conflito com os interesses públicos da Rússia.


Apesar de o caso citado ser bastante dramático, o fato é que, recentemente, a execução de laudos arbitrais estrangeiros na Rússia tem se tornado mais frequente e livre de surpresas[8], indicando avanços na percepção das cortes sobre a importância deste valioso instrumento das relações comerciais internacionais.



[1] A versão traduzida da Lei de Arbitragem da China encontra-se no blog do autor: .
[2] Implantado por uma Interpretação da Suprema Corte do Povo da China, o órgão máximo de seu poder judiciário. Suas interpretações são semelhantes às súmulas dos tribunais superiores brasileiros, e têm a função de guiar os juízes na interpretação da lei.
[3] To attract the confidence of International Mercantile community and the growing volume of India’s trade and commercial relationship with the rest of the world after the new liberalization policy of the Government, Indian Parliament was persuaded to enact the Arbitration & Conciliation Act of 1996 in UNCITRAL model and therefore in interpreting any provisions of the 1996 Act Courts must not ignore the objects and purpose of the enactment of 1996. A bare comparison of different provisions of the Arbitration Act of 1940 with the provisions of Arbitration & Conciliation Act, 1996 would unequivocally indicate that 1996 Act limits intervention of Court with an arbitral process to the minimum.
 [4] 47. Evidence. - (1) The party applying for the enforcement of a foreign award shall, at the time of the application, produce before the court (a) the original award or a copy thereof, duly authenticated in the manner required by the law of the country in which it was made; (b) the original agreement for arbitration or a duly certified copy thereof; and (c) such evidence as may be necessary to prove that the award is a foreign award.
[5] Article 1 - Scope of Application
1. The present Law applies to international commercial arbitration if the place of arbitration is in the territory of the Russian Federation. However, the provisions of Articles 8, 9, 35 and 36 apply also if the place of arbitration is abroad.
2. Pursuant to an agreement of the parties, the following may be referred to international commercial arbitration:
- disputes resulting from contractual and other civil law relationships arising in the course of foreign trade and other forms of international economic relations, provided that the place of business of at least one of the parties is situated abroad; as well as
- disputes arising between enterprises with foreign investment, international associations and organizations established in the territory of the Russian Federation; disputes between the participants of such entities; as well as disputes between such entities and other subjects of the Russian Federation law.
[6] Artigo disponível em http://meetings.abanet.org/webupload/commupload/IC855000 /relatedresources/EnforcingArbitrationAwardsinRussiaandUkraineCLEMaterials.pdf
 [7] Enforcement of Arbitration Awards in Russia and Ukraine: Dream or Reality? ABA. Disponível em http://meetings.abanet.org/webupload/commupload/IC855000/relatedresources/EnforcingArbitrationAwardsinRussiaandUkraineCLEMaterials.pdf
[8] Conforme o artigo: Enforcement of Foreign Arbitral Awards in Russia: Improving, But Still Uncertain.   C.M. Baker, J. Sutcliffe, K. Wilson e K.H. Romman, Disponível em www.ogel.org.

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