sábado, 13 de julho de 2013

Escravidão dos médicos. Ou, o governo pode obrigá-lo a sambar?

Este post não é sobre Direito Internacional, embora traga alguns comentários sobre a lei inglesa, no que toca à formação dos médicos naquele país. Este post é para demonstrar que as regras do programa "mais médicos" são ilegais, especialmente em relação à obrigatoriedade de estágio no SUS.

Vou escrevê-lo em linguagem mais simples do que o usual. Tenho esperança de conseguir convencer pelo menos os amigos mais próximos. Vamos lá, não vai doer.

Quem não tiver tempo de ler tudo, por favor pule para a conclusão. 

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Imagine que você é a presidenta de um país gigante, famoso pelo samba.

Mas você está com um problema. As pessoas não estão sambando tanto quanto deveriam. Os desfiles de carnaval estão menos felizes. E, embora a situação no litoral não seja tão ruim, o nível de pessoas sambantes no interior do país é muito baixo. 

Você reúne sua equipe, e pergunta: como podemos fazer as pessoas voltarem a sambar?

Vamos pagá-las para sambar, diz um assessor. 
Outro atalha: o samba é muito difícil. Temos que simplificar o samba. 
Mais um diz: temos que levar o pessoal do litoral para o interior. Eles ensinarão os interioranos a sambar. 

Mas nenhuma dessas soluções parece boa para você. 

Até que um último assessor lança uma ideia imbatível. Ele diz assim:

-Presidenta, todas as pessoas do país vão para a escola, não vão? Então, para fazê-las sambar, é só incluir o samba como disciplina obrigatória. Quem não sambar sem parar, por 5 anos depois de formado, não ganhará o diploma. 

-Mas isso não é, assim, meio estranho? Você pergunta. Será que as pessoas não vão reclamar?

-Claro que não, Presidenta. Fique tranquila. Garanto a você que todos estarão sambando alegremente a partir de 2015.

Fim da história. 

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Agora ao drama real. 

O governo acha que há poucos médicos na rede pública.

Dentre todas as soluções possíveis para esse problema, o governo decidiu que seria conveniente obrigar os estudantes de medicina a trabalharem por 2 anos da rede pública. 

Eu gostaria de demonstrar duas coisas: primeiro, que a forma adotada pelo governo para obrigar os estudantes a trabalharem para o SUS foi ilegal. E depois, que a suposta solução é falsa, e não vai ajudar o sistema de saúde. 

Vejam só: o governo quer obrigar milhares de médicos a trabalharem para o SUS. 

A primeira coisa que vem à cabeça seria publicar uma medida provisória (que tem força de lei) dizendo o seguinte:

Tentativa 1: "Todos os médicos são obrigados a trabalhar dois anos na rede pública, sem receber salário". 

Mas essa lei tem algo de estranho, não tem? Obrigar as pessoas a trabalhar sem receber salário soa um pouco como escravidão. Afinal, você não gostaria que o governo o obrigasse a recolher o lixo das ruas sem receber salário, ou a trabalhar na polícia sem receber nada em troca. 

Além disso, a Constituição diz que é preciso respeitar a liberdade das pessoas. Nem mesmo o governo pode obrigar alguém a trabalhar onde não queira, muito menos de graça. Os milhares de advogados que trabalham para o governo sabem disso muito bem. 

Então, o governo faz uma segunda tentativa: 

Tentativa 2: "Todos os médicos são obrigados a trabalhar dois anos na rede pública, recebendo o salário que o governo determinar". 

Aparentemente, melhorou um pouco. 

Mas essa lei ainda tem muitos problemas. Para começar, ela desrespeita a liberdade de escolha dos médicos. E se o médico não quiser trabalhar para o governo? E se o sonho do médico for trabalhar de graça, para alguma instituição de caridade?

Além disso, você não fica com um pouco de medo em saber que o salário será determinado pelo governo, sem que você saiba qual é o salário? E se o governo disser que o salário é de apenas 10 centavos por mês?

Ainda parece muito com escravidão, pelo menos para mim. 

Observando isso, o governo pode tentar reformular a lei, utilizando outros argumentos. Por exemplo: 

Tentativa3: "É dever cívico de todos os médicos trabalharem dois anos na rede pública. sob pena de cadeia"

Que lei estranha! Ela começa bem, falando sobre "dever cívico". Realmente, parece que é um dever cívico dos médicos ajudar os doentes. E, se eles devem ajudar, por que não trabalhando na rede pública?

Mas esse final... "sob pena de cadeia", não soa bem. Quer dizer que o governo vai mandar prender os médicos? Mas a cadeia não é só para quem cometeu crimes? Qual teria sido o crime do médico?

Então você começa a pensar. Quais são, realmente, os deveres cívicos? Aqueles que todo mundo deve cumprir?

Alguns exemplos vêm à cabeça: prestar o serviço militar obrigatório e ser mesário nas eleições. 

Porém, qualquer pessoa pode servir o exército ou ser mesário. É um dever geral. Todos devem comparecer.

Além disso, a constituição do nosso país prevê que as pessoas devem se alistar nas forças armadas. 

Mas a constituição não fala nada sobre os médicos. E nem sobre os técnicos de solda, ou sobre qualquer outra profissão. 

Não parece injusto que o governo possa, com uma lei (na verdade, Medida Provisória) obrigar os médicos a fazer uma coisa que ninguém mais tem que fazer?

E se o governo tomar gosto pela coisa? Será que ele pode dizer que todos os formados em letras são obrigados a trabalhar para o governo de graça, sob pena de cadeia? Afinal, temos tantos analfabetos. Certamente seria também um dever cívico dos formados em letras ensinar os analfabetos a ler e escrever. 

Soa tão estranho que o governo possa obrigar as pessoas a trabalhar, sendo que a constituição diz que todos são livres... Está certo que a Constituição fala sobre o serviço militar, que até se parece um pouco com uma escravidão. Mas ela só fala sobre isso. Não dá outras opções de "escravidão" para o governo. 

Por fim, você pensa "e se o governo quiser obrigar os bachareis em letras a trabalharem de graça por 30 anos, ao invés de apenas 2?".  Esse pensamento é assustador, e você logo conclui que isso seria algo absurdo. Não, o governo não pode obrigar as pessoas a trabalhar. Nem de graça, nem recebendo dinheiro. De jeito nenhum. Obrigar alguém a trabalhar está além do poder do governo. 

Se você chegou a esta conclusão, saiba que os advogados e ministros do governo também chegaram à mesma conclusão. E justamente por isso eles não publicaram uma medida provisória que simplesmente obrigava os médicos a trabalharem. Afinal, ela seria inconstitucional. 

Mas o governo ainda queria que os médicos trabalhassem para ele. Então se colocou a pensar no que poderia fazer para tornar essa ideia realidade. Algumas ideias que certamente passaram pela cabeça do governo foram: 

Ideia 1: Pagar mais dinheiro aos médicos que forem para o interior. 

Problema: O governo não tem dinheiro (não para isso, pelo menos. Os estádios para a copa ficaram bem bonitos). Não dá para pagar mais aos médicos. Além disso, os médicos já recebem muito mais que os trabalhadores comuns. E, mesmo com salários de 20 mil reais por mês, muitas cidades não conseguem contratar médicos.  O governo certamente conseguiria atrair médicos se pagasse um salário extremamente alto: 100 mil reais por mês, por exemplo. Mas pagar 100 mil reais por mês seria arriscado para o governo, porque a oposição iria dizer que o governo estava enriquecendo os médicos. Então, para não ser atacado, o governo decidiu que era melhor não pagar o médico e deixar as pessoas sem médico mesmo. O governo teria que pensar em outra solução. 


Ideia 2: O médico de escola pública que não trabalhar 2 anos para o governo depois de se formar terá que pagar para o governo todos os gastos da faculdade. Quem trabalhar para o governo, por outro lado, não paga nada. 

Problema: A ideia parece boa. Ela realmente é boa, e inclusive é utilizada pelo governo em vários outros cursos. Muitos cursos de engenharia das escolas do exército funcionam assim. O engenheiro que se formar e não for trabalhar para o exército tem que devolver ao governo o valor que o governo investiu nele. Parece justo.   
                  Mas, apesar de parecer boa, a ideia tem problemas. O primeiro problema é que ela transforma as universidades pública em universidades privadas, particulares. Vejam só: o estudante é obrigado a "pagar", por meio do seu trabalho, o investimento que o estado fez nele. Normalmente, quando alguém é obrigado a pagar pelo estudo, essa pessoa está estudando numa universidade particular, não é mesmo? E nesse caso não é diferente. Tanto assim que o aluno que não quiser "pagar com trabalho" vai ser obrigado a pagar em dinheiro mesmo. Ou seja, o aluno vai entregar dinheiro para a escola. Exatamente como nas faculdades privadas. Isso não seria um problema muito grande, em geral. Mas é um problema para esse governo porque ele é contra as privatizações. A Presidenta já fez vários discursos dizendo que privatizar (ou seja, cobrar pelo uso de) serviços do estado é um absurdo. Ela ficou com vergonha de fazer exatamente aquilo que tanto criticou.  

                 Um outro problema é que o governo só pode usar esse plano com os estudantes de universidades públicas. Afinal, os estudantes de faculdades particulares já pagaram pelo curso com dinheiro. Depois de formados, vão trabalhar onde bem quiserem. Alguns vão para o SUS, outros não vão. Mas o governo acha que todos, absolutamente todos os estudantes de medicina precisam ir trabalhar para o governo. Captar somente os estudantes de escolas públicas seria insuficiente. 

Idéia 3: Importar médicos (não dá para importar pessoas, mas você entendeu. Deixar que médicos de outros países trabalhem no Brasil)

Problema: A ideia não é ruim. Afinal, nós importamos artistas, que vêm se apresentar no Brasil. Também importamos cientistas, que vem nos ajudar com a tecnologia. Por que não deixar que médicos de outros países venham ao Brasil, já que aqui faltam médicos?
                   O problema é o seguinte: os médicos de outros países já podem vir ao Brasil. Eles só precisam fazer uma prova que mostre que eles realmente são médicos. O problema é que nosso país é pobre, e poucos médicos querem sair dos países deles para vire, trabalhar aqui. Além disso, a prova que eles têm que fazer é muito difícil, e poucos dos que tentam conseguem passar. 


Deu para perceber que o governo estava numa encruzilhada, num "mato sem cachorro". Ele queria médicos, mas não tinha dinheiro para pagar os médicos. Também não poderia obrigar os médicos formados em escolas públicas a trabalharem para ele. E os médicos de outros países não queriam vir para cá. 

Foi então que surgiu a ideia número 4. 

Preste atenção. A ideia número 4 é a chave do problema!

Ideia 4: Aproveitar que o governo é que determina o que deve ser estudado nas faculdades, e inserir na lista obrigatória de coisas a serem estudadas um estágio de dois anos, no governo. 

Problema: Essa solução tem muitos problemas. 

                 O primeiro problema tem um nome complicado: adequação substancial como pressuposto de validade. Apesar do nome estranho, a ideia é simples: Quando dizemos que o governo pode dizer o que temos que fazer para conseguir alguma autorização, esperamos que o governo diga que precisamos saber ou fazer coisas que "têm a ver" com aquela autorização. 

                  Por exemplo: para tirar carteira de motorista, é preciso saber dirigir um carro. Simples.
                  Agora, imagine que o governo diga que, para tirar carteira de motorista, todo mundo é obrigado a saber pilotar um avião. Seria absurdo, não é? Como é que pode, precisar saber pilotar avião para dirigir um carro?
                  Mas veja só: o governo, em teoria, tem o poder de dizer quais são as condições que você tem que cumprir para conseguir uma licença. Ou seja, se olharmos só para o poder do governo, teríamos que concluir que ele poderia, sim, exigir que você pilote um avião para poder tirar carta de motorista. 

                 Só que os advogados não nasceram ontem. Dizer que saber pilotar um avião é pré-requisito para dirigir um carro é uma coisa tão absurda, mas tão sem lógica, tão maluca, que os advogados logo deram um jeito de dizer que o governo não pode fazer isso. Disseram que o governo é obrigado a fazer leis que tenham sentido. Lei que não tem sentido, lei maluca, não vale. Ou seja, leis em que a substância não é adequada ao fim não preenchem os requisitos de uma lei de verdade. 

                  Vamos dar outros exemplos. O governo também é responsável por dizer como uma casa tem que ser construída. O governo tem esse poder para evitar que as pessoas construam casas muito fraquinhas, que caiam com a primeira chuva. 
                  Pois bem. Imagine que você vai construir sua casa e descobre que, na sua cidade, o governo só autoriza a construção de casas de meio metro de altura. Assim, como casas de cachorro.  
                  Ora, mas isso seria absurdo! Como é que você vai morar numa casa de cachorro? 
                  Mas, apesar de ser absurda, a lei está lá, pregada no muro da prefeitura. Nesta cidade, as casas só podem ter meio metro de altura. 
                  Veja bem: a lei existe. Está lá, bonitinha (formalmente, ela é perfeita. Foi aprovada pela câmara dos vereadores, etc.). Mas, apesar de existir, ela não vale. E não vale porque, se a lei for seguida, o direito que a lei quer defender vai ser prejudicado. Se uma lei que regula a construção de casas para pessoas diz que é proibido construir casas onde cabem pessoas, então ela não é uma lei que regula a construção de casas. Na verdade, ela é uma lei que proíbe a construção de casas, e condena as pessoas a morarem na rua. 
                   Como a lei não pode fazer isso, então é a lei que deve ser considerada ilegal. 

                   Sei que estou abusando, mas vou dar mais um exemplo, só para reforçar como é importante que as leis sejam adequadas a seus fins. 
                    Imagine que, para conseguir o CPF, todo cidadão seja obrigado a participar de uma passeata a favor do governo. 
                    Isso mesmo! Você vai pedir seu CPF, e o agente do governo diz: Só posso dar CPF para quem já participou de uma passeata, elogiando nossa presidenta, e dizendo que ela é linda!
                  Ora, o que tem a ver uma coisa com a outra? Será que o governo pode obrigar você a participar de uma passeata para obter um CPF?
                  Bem, o governo tem o poder de listar as exigências para quem quer um CPF. Normalmente o governo pede que a pessoa tenha endereço fixo e uma carteira de identidade. O governo pede também uma taxa (pouco, uns 8 reais). Não há dúvida de que é o governo que decide o que a pessoa tem que ter, ou ser, para obter um número de CPF. 
                   Mas participar de uma passeata pró-governo é demais! Não tem nenhuma relação com o CPF. O governo só está fazendo isso porque ele sabe que você precisa do CPF. Ele está se aproveitando da sua necessidade, tirando proveito da sua situação, para se autopromover. 
                   Em outras palavras, o governo estaria extorquindo de você alguma coisa, em troca de um serviço que ele deveria prestar. 
                   Justamente para evitar que o governo faça isso, os advogados criaram a ideia da adequação substancial. Assim, fica garantido que o governo só pode exigir o que for razoável, o que "tiver a ver" com a licença ou documento que você está pedindo. 

                   Então, acho que está bem claro: o governo não pode alterar o currículo de medicina só porque deseja que os médicos trabalhem para o SUS. Isso seria a mesma coisa que pedir aos médicos que participassem de uma passeata pró-governo. Ou exigir dos médicos que eles soubessem pilotar um avião. O governo só poderia alterar o currículo do curso de medicina se houvesse uma boa razão para isso. E uma razão científica! 


                 Vamos ver se havia uma boa razão? E vamos ver se a razão tem sempre que ser científica?

                Vou começar explicando por que a justificativa de alteração do currículo tem que ser científica, ou seja, baseada na ciência. 

                   Digamos que o governo foi eleito por pessoas muito religiosas, que acreditam que o vinho que o padre serve na missa é, na verdade, o sangue de Jesus Cristo. 
                    É claro que, simbolicamente, é fácil entender que o vinho representa o sangue de Jesus Cristo. Mas digamos que as pessoas que elegeram o governo acreditem que não tem nada de simbólico nisso. Que o vinho é, de verdade, sangue. 
                   Para provar o ponto de vista deles, os religiosos chamam um cientista e pedem ao cientista que analise o líquido. 
                 O cientista, depois de algum tempo, volta com a análise. E a resposta é que o líquido é vinho. 
                 Os religiosos acham um absurdo! Como o cientista ousa dizer que o sangue de cristo é vinho? Tudo bem, ERA vinho. Mas, depois da consagração, virou sangue. Será que o cientista é estúpido?
                  Para evitar que isso se repita novamente, os religiosos mandam alterar o currículo das escolas de ciência, de modo que todos os alunos aprendam que o vinho, se analisado num microscópio, só pode ser considerado vinho se não tiver sido consagrado pelo Padre. Se o vinho tiver sido consagrado, ele deve ser classificado como sangue. 
                Alguém poderia dizer: mas o vinho não tem hemoglobinas. Nem plasma. Nem células. Não serve para transplantes. Tem álcool demais, mais do que seria possível para sangue humano. Não é sangue de verdade. 
               Quem dissesse isso seria logo assassinado. Afinal, o governo disse que os alunos deveriam classificar o vinho como sangue, e ponto final. 

                  A partir desse exemplo, você acha que o governo tem o poder de alterar os currículos com base em ideias políticas e religiosas? 
                   Não seria mais razoável que o governo só pudesse alterar os currículos justamente no sentido inverso? Ou seja, para proibir que os currículos ensinassem bobagens ideológicas e para obrigar que os currículos só contenham fatos científicos?

                      Muito bem. Se você concorda com isso, então devemos concordar que o governo não poderia alterar o currículo dos cursos da medicina apenas porque acredita que é bom ter mais médicos, nem porque acha que, obrigando mais médicos a trabalharem no SUS, ele vai ganhar a próxima eleição. Se você concorda que os currículos só podem ser alterados se houver uma razão científica, então devemos verificar se o governo realmente tem alguma explicação lógica, científica, para ter alterado tão drasticamente o currículo de um curso. 

                 Vamos ver: 

                 a) o médico brasileiro é mal preparado? Sai do curso sem saber como atender pacientes?
                 Resposta: não parece ser o caso. O curso já traz estágios obrigatórios, em que o estudante faz muitos e muitos atendimentos. E, pelo contrário, a qualidade dos médicos brasileiros é muito elogiada, até no exterior. 

                 b) alguma associação médica, ou o conselho regional de medicina, ou alguma organização internacional, recomendou que o curso fosse aumentado para 8 anos como condição essencial para a formação de médicos no Brasil?
                 Resposta: NÃO. 

                  c) Houve algum estudo demonstrando que a quantidade exata de tempo necessária para a formação complementar do médico era de 24 meses? Não seriam 16 meses, ou 18?
                   Resposta: O número de 24 meses foi inventado sem nenhuma justificativa. 

                 d) Os países mais avançados do que nós na ciência médica adotam a formação em 8 anos, com trabalho obrigatório no serviço público por dois anos?
                  Resposta: NÃO e NÃO. Ao contrário do que o governo anunciou, a Inglaterra não obriga os estudantes de medicina a trabalhar por 2 anos no serviço público. A Inglaterra tem um programa muitíssimo bem estruturado de treinamento combinado com estudo, semelhante à nossa residência médica. Esse programa foi desenvolvido para permitir que o futuro médico tenha acesso a várias especialidades médicas. Assim, ele passa 3 meses na cirurgia, 6 meses na clínica geral, etc. O programa tem provas e é acompanhado por professores, e monitorado por vários órgãos do governo inglês. Note que o programa inglês tem o objetivo contrário ao objetivo do programa brasileiro. O governo inglês quer permitir que o médico se especialize. O governo brasileiro diz que o médico deve ter mais contato com a clínica geral e com a atenção básica, e que por isso não deve se especializar!

                 Já deu para ver, então, que não há uma explicação científica para o aumento na duração do curso. 

              Não tenho dúvidas de que uma explicação poderá ser fabricada, inventada. Mas é muito estranho que primeiro o governo tenha concluído que o curso precisava ser alterado, para só depois solicitar estudos para saber se realmente o currículo tinha problemas. Parece que o governo resolveu alterar o currículo a qualquer custo, sem ter nenhuma explicação. 

                 Finalmente, a ideia tem mais um aspecto interessante. Uma vez que o governo está alterando o currículo geral do curso, ele pode aplicar a mesma exigência para TODOS os estudantes de medicina. Tanto os de escola pública quanto os de escolas particulares. 
                   Viram só que grande ideia? O governo não pode obrigar que os estudantes de escolas particulares tenham que "pagar" o curso por meio de trabalho para o SUS. Mas, mudando o currículo e passando a exigir o trabalho no SUS como condição para obtenção do diploma, ele consegue capturar todos os estudantes de medicina do país, de uma só vez!

                    Cabe analisar aqui mais algumas questões que demonstram como a obrigatoriedade de trabalho exclusivamente no SUS é absurda. As questões abaixo têm relevância especial para os estudantes que estudaram em escolas particulares. 

               f) Existe alguma diferença científica entre trabalhar para o SUS ou trabalhar para uma instituição de caridade que atenda comunidades carentes?
                Resposta: Se os seres humanos são os mesmos, e se as comunidades carentes tiverem necessidades semelhantes às outras comunidades no país, não pode haver diferenças importantes. 
                                  Contudo, o estudante fica PROIBIDO de trabalhar para comunidades carentes, e OBRIGADO a trabalhar somente para o SUS. Qual a justificativa para isso? O aprendizado não seria o mesmo? Se a alteração do currículo tivesse sido motivada por razões técnicas, por que haveria diferença entre o trabalho para o SUS e o trabalho voluntário? (ou mesmo o trabalho privado, em hospitais privados?)
  
                 g) Por que o governo está oferecendo bolsas aos médicos? Se o estágio no SUS é elemento essencial à formação médica, o médico poderia muito bem trabalhar de graça, assim como faz durante a faculdade. 
                 Resposta: Não tenho uma resposta clara. Mas suspeito que o governo tenha incluído a bolsa para suavizar a medida, e para gerar apoio popular. 


ASPECTOS ECONÔMICOS

O texto já está ficando bem longo. Mas é importante ressaltar algumas falhas do projeto do governo: 

i) o número total de médicos não vai aumentar. 

   Nada impede que o município despeça o médico que já contratou e contrate um médico recém-formado, que ganhará menos. 

  Se o orçamento total da saúde não aumentar, o número de médicos também não vai aumentar. A medida teria quer vir acompanhada de um aumento no orçamento da saúde equivalente ao salário de TODOS os estudantes de medicina do país. Isso não aconteceu. 


ii) O preço dos planos de saúde vai aumentar, ou então a qualidade vai piorar.

      Daqui a alguns anos, os planos de saúde começarão a sentir falta de funcionários médicos, pois os médicos que se formarem não poderão atender planos de saúde (estarão vinculados ao governo). É importante lembrar que médicos recém formados são importantes para os planos de saúde, porque ainda não têm uma clientela privada formada, e tendem a atender muitos dos segurados. 

      Isso poderia ser resolvido aumentando o preço dos planos de saúde, de modo que menos pessoas tivessem acesso aos planos. Com menos clientes, um número menor de médicos poderia prestar os atendimentos. 

    Só que isso não acontecerá, porque o governo regula os preços dos planos de saúde. Se o governo não permitir que os planos aumentem os preços, então os planos não terão como reduzir a demanda. O resultado será filas de espera maiores.      



                CONCLUSÃO: 


Vimos que o governo brasileiro deseja obrigar médicos a trabalharem para o SUS. 

Vimos que simplesmente instituir or serviço obrigatório não é uma opção, por se assemelhar ao serviço militar e ser inconstitucional.

Vimos também que o governo não optou por medidas já consagradas de atração de médicos recém-formados, tais como o oferecimento de salários mais altos ou a exigência de trabalho por parte dos estudantes de universidades públicas, como forma de pagamento pelo curso. 

Observamos que o governo optou por incluir o trabalho no SUS como elemento do currículo do curso de medicina. 

E concluímos que a inclusão do trabalho no SUS como exigência do currículo não foi baseada em critérios científicos. 

Portanto, a norma que realizou a inclusão do trabalho no SUS como condição para a gradução medica não tem adequação substancial (não é uma norma educacional verdadeira), e deve ser considerada inválida. 


  
             NOTA PESSOAL

O raciocínio jurídico que nos leva a concluir que a exigência de trabalho para o SUS é inválida pode até ser um pouco longo, mas pode ser resumido numa máxima simples: "há coisas que o governo pode fazer, e coisas que o governo não pode fazer". 

O governo pode até prender uma pessoa, é certo. Mas não pode prender qualquer um, sem motivo. É preciso haver uma lei, um processo, direito de defesa.

E já dissemos que o governo pode até exigir uma prova de direção antes de liberar a carteira de motorista, mas não pode exigir que o candidato saiba pilotar um foguete para que consiga a habilitação para pilotar motos. 

Contudo, essa noção simples ainda não foi absorvida pelos brasileiros. 

Se o governo der uma explicação que apele para o lado emocional, ou se o governo utilizar frases de efeito, ele tem muita facilidade obter o apoio da população para medidas ditatoriais, autoritárias ou simplesmente malignas. 

Bastou dizer que o trabalho dos médicos junto ao SUS é "justiça social", e o governo conseguiu convencer grande parte da população a condenar os médicos a uma servidão forçada, semelhante à escravidão. 

Acima de tudo, me doeu o seguinte: o governo sabia o que estava fazendo. Abusou do direito de regular os currículos.  E fez isso com claros objetivos eleitorais. Queria demonstrar que estava preocupado com a saúde dos pobres. 

E, para conseguir uma vantagem eleitoral, o governo voluntariamente escravizou milhares de pessoas (tecnicamente, obrigou milhares de pessoas a um serviço social forçado. Mas a diferença entre isso e escravidão é um mero detalhe). 

Há coisas que o governo não pode fazer. 

Ainda assim, nós damos ao governo larga margem de tolerância. Permitimos que os policiais espanquem presos, que a Receita Federal cobre tributos indevidos, que a Justiça do Trabalho penhore contas bancárias sem nem mesmo avisar aos donos das contas. Somos muito, muito bonzinhos com o governo. Damos a ele toda a liberdade que ele merece, e muito mais. 

Mas, quando o governo acha que pode escravizar as pessoas, então acho que o tempo de brincar acabou. O assunto é muito sério. 

De todas as pessoas, justamente a Dilma, que lutou contra a ditadura, adotou a norma mais restritiva de direitos que se viu neste país desde o AI-5. 

O Collor congelou o dinheiro das pessoas. Mas a Dilma roubou diretamente a liberdade delas. 

Essa lei tem que cair. Se o congresso aprová-la e os tribunais não a derrubarem, então não haverá nada que o governo não possa fazer.  





2 comentários:

  1. É, estamos a um passo da Ditadura...

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  2. O governo federal sinalizou intenção de franquear os direitos profissionais exclusivos dos médicos com outras profissões. O veto da presidente Dilma ao Ato Médico elaborado pelo Senado tem o objetivo de retirar dos médicos o direito de exclusividade sobre ações próprias destes profissionais. Segundo o governo a carência de médicos em áreas mais remotas faz com que profissionais de outras áreas tenham que fazer o papel dos médicos.

    Mas a não restrição pode gerar problemas ao atendimento de saúde. Deste modo um paciente poderá ocasionalmente receber em uma internação hospitalar não apenas um diagnóstico por profissional. E poderá também receber tratamento para as duas doenças em questão. O médico pode optar por tratar uma crise de diverticulite enquanto o enfermeiro poderá tratar de uma cólica biliar. O paciente poderá sair com os dois tratamentos , se sair, do hospital.

    Com isso o governo também espera não precisar mais de médicos no interior pois os enfermeiros preencherão as vagas destes profissionais para tratar as doenças dos brasileiros.

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